Como
ex-aluno de um colégio católico (um colégio de freiras), desde criança convivi
com a hipocrisia e o abuso de poder dessa instituição. Lembro-me, por exemplo, de
uma freira que dava aulas de Religião (a religião católica, é claro...) e que,
certo dia, determinou que todos os alunos escrevessem uma oração para Jesus
Cristo. Detalhe: a oração valeria nota!
Ao
ouvir o convite do meu amigo, tive um primeiro impulso de mentir, inventar alguma
desculpa, alegar falta de tempo ou algo do tipo. Mas resolvi entrar de verdade,
com verdade, nessa conversa. Respondi
que eu era muito crítico em relação à Igreja Católica e ao uso que ela fazia (e
continua fazendo) do teatro. Lembrei o processo de colonização que o Império Português
havia imposto aos povos indígenas que já habitavam estas terras antes delas receberem
o nome de “Brasil”
– colonização que teve como um de seus principais pilares a catequização
indígena realizada pelos jesuítas, sobretudo por meio do teatro – e comentei a
visão do escritor indígena Kaká Werá Jecupé sobre o teatro jesuíta:
Na
minha percepção, tão terrível quanto a guerra e quanto a doença trazidas do
outro lado do oceano e quanto a escravidão, foi para os povos indígenas o
teatro. Uma guerra acaba com os corpos, mas a alma continua. Uma doença provoca
muitas vezes a dizimação de famílias, de tribos, mas o espírito continua. Mas o
teatro que fizeram no passado não acabou com os corpos, acabou com muitas
almas. O teatro desestruturou cosmovisões ancestrais, valores ancestrais,
valores sagrados. Ele desestruturou o modo de pensar e o modo de os índios se
relacionarem com a realidade, em nome de uma suposta verdade maior. Isso foi
chamado de catequização. (WERÁ, 2011, p. 68)
Por
meio do teatro, os pajés se tornaram diabos e os líderes indígenas e sua
sabedoria se tornaram demônios. Peguem os textos de José de Anchieta do século XVI,
que vocês vão ver os personagens que há lá. Aimberê, o grande demônio,
Cunhambebe, o próprio Satã, e assim vai. Os autos de José de Anchieta
conseguiram colocar a ideia do mal e do bem dentro de uma cultura onde isso
praticamente não existia. E, mais que isso, as peças que eram representadas,
com o passar do tempo, faziam com que os guaianás apagassem sua memória e os
convenciam de que suas próprias visões, seus próprios valores estavam errados,
seu modo de ser estava errado. (WERÁ, 2011, p. 69)
Por
tudo isso, complementei, não me interessava levar ferramentas técnicas para contribuir
com um teatro que, de certa forma, representa a continuidade do teatro jesuíta
e seu objetivo de evangelização.
No
entanto, consciente de que dentro da Igreja existem alas mais libertárias, eu disse
a meu amigo que eu concordaria em conversar com o grupo de jovens se houvesse
espaço para refletirmos de forma crítica sobre todas essas questões. Nesse
sentido, lembrei da proposta de “Teatro-Bíblia” que Augusto Boal descreveu na
década de 70 em seu livro Técnicas latino-americanas
de teatro popular – uma proposta que buscava apresentar a figura de Jesus Cristo
como um revolucionário de seu tempo, um homem que questionava o poder, a
desigualdade e o preconceito, e que por isso mesmo havia sido crucificado:
Procura-se
oferecer, através do teatro, uma visão “histórica” das atividades de Jesus,
certamente cheias de significado político [...], um aspecto que normalmente não
se leva em conta. [...] Que faria Jesus se vivesse hoje, historicamente, entre
nós – ele que viveu num país ocupado pelo imperialismo, neste caso, o romano?
Como lutou pela libertação do seu povo? Como organizou esse povo? Não apenas a
vida de Cristo, mas também toda a Bíblia, não apenas o Novo, mas igualmente o
Antigo Testamento, estão cheios de exemplos de lutas heroicas pela liberdade.
[...] Sendo Jesus tão persuasivo nas suas prédicas, até aqueles que não viam a
necessidade de combater o imperialismo romano, depois de ouvi-lo, curavam-se da
cegueira. Eram tão eficazes suas palavras que aqueles que viam essa
necessidade, mas, como se fossem paralíticos, nada faziam e se justificavam de
todas as maneiras possíveis, até esses começavam a fazer o que deviam. E para o
cúmulo, aqueles que já estavam mortos para a causa da luta anti-imperialista,
esses ressuscitavam e lutavam. Essas são traduções possíveis da fábula. (BOAL,
1979, p. 63 – 64)
Para
minha surpresa – alegre surpresa – meu amigo me disse que os integrantes do
grupo eram muito abertos a propostas desse tipo e que há alguns anos atrás haviam
encenado uma versão nada convencional da Paixão de Cristo, mostrando Jesus como
um presidiário em sua relação com a sociedade e o sistema carcerário. Imaginei que
essa leitura tão contemporânea não deve ter caído nas graças do público e pensei
na coragem dos que buscam fazer arte não para reafirmar éticas e estéticas já
digeridas, mas para propor outros olhares, reflexões, experiências, mesmo
correndo o risco de desagradar – como, aliás, foi o caso de Jesus...
Enfim,
não sei como essa história vai continuar. Pode ser que o grupo se interesse
mais por um professor que ensine técnicas de atuação, sem grandes
questionamentos éticos. Isso é comum nas próprias escolas de teatro... De minha
parte, senti que o “não” inicial ao convite de meu amigo se abriu como uma possibilidade
curiosa e não-ingênua de ir até esse grupo e perceber como essas questões poderiam
(podem) reverberar. Vamos ver o que acontece...
Referências bibliográficas:
BOAL, Augusto.
Técnicas latino-americanas de teatro popular. São Paulo: Hucitec, 1979.
WERÁ, Kaká.
O poder do teatro e as táticas de resistência. In: PARDO, Ana Lúcia (org.). A teatralidade do humano. São Paulo:
Edições SESC-SP, 2011, p. 68 a 76.