quinta-feira, 24 de abril de 2014

"Paixões de Cristo" - um olhar crítico

Eu conversava com um amigo que faz parte do grupo de jovens de uma igreja de seu bairro. Ele me contava como havia sido a encenação da Paixão de Cristo e enfatizava detalhes do cenário grandioso e da caracterização física dos personagens, incluindo a maquiagem e os figurinos. Em certo momento, perguntou se eu teria interesse em contribuir com o grupo, oferecendo alguma formação técnica ligada à atuação.

Como ex-aluno de um colégio católico (um colégio de freiras), desde criança convivi com a hipocrisia e o abuso de poder dessa instituição. Lembro-me, por exemplo, de uma freira que dava aulas de Religião (a religião católica, é claro...) e que, certo dia, determinou que todos os alunos escrevessem uma oração para Jesus Cristo. Detalhe: a oração valeria nota!

Ao ouvir o convite do meu amigo, tive um primeiro impulso de mentir, inventar alguma desculpa, alegar falta de tempo ou algo do tipo. Mas resolvi entrar de verdade, com verdade, nessa conversa. Respondi que eu era muito crítico em relação à Igreja Católica e ao uso que ela fazia (e continua fazendo) do teatro. Lembrei o processo de colonização que o Império Português havia imposto aos povos indígenas que já habitavam estas terras antes delas receberem o nome de “Brasil”


– colonização que teve como um de seus principais pilares a catequização indígena realizada pelos jesuítas, sobretudo por meio do teatro – e comentei a visão do escritor indígena Kaká Werá Jecupé sobre o teatro jesuíta:

Na minha percepção, tão terrível quanto a guerra e quanto a doença trazidas do outro lado do oceano e quanto a escravidão, foi para os povos indígenas o teatro. Uma guerra acaba com os corpos, mas a alma continua. Uma doença provoca muitas vezes a dizimação de famílias, de tribos, mas o espírito continua. Mas o teatro que fizeram no passado não acabou com os corpos, acabou com muitas almas. O teatro desestruturou cosmovisões ancestrais, valores ancestrais, valores sagrados. Ele desestruturou o modo de pensar e o modo de os índios se relacionarem com a realidade, em nome de uma suposta verdade maior. Isso foi chamado de catequização. (WERÁ, 2011, p. 68)

Por meio do teatro, os pajés se tornaram diabos e os líderes indígenas e sua sabedoria se tornaram demônios. Peguem os textos de José de Anchieta do século XVI, que vocês vão ver os personagens que há lá. Aimberê, o grande demônio, Cunhambebe, o próprio Satã, e assim vai. Os autos de José de Anchieta conseguiram colocar a ideia do mal e do bem dentro de uma cultura onde isso praticamente não existia. E, mais que isso, as peças que eram representadas, com o passar do tempo, faziam com que os guaianás apagassem sua memória e os convenciam de que suas próprias visões, seus próprios valores estavam errados, seu modo de ser estava errado. (WERÁ, 2011, p. 69)



Por tudo isso, complementei, não me interessava levar ferramentas técnicas para contribuir com um teatro que, de certa forma, representa a continuidade do teatro jesuíta e seu objetivo de evangelização.

No entanto, consciente de que dentro da Igreja existem alas mais libertárias, eu disse a meu amigo que eu concordaria em conversar com o grupo de jovens se houvesse espaço para refletirmos de forma crítica sobre todas essas questões. Nesse sentido, lembrei da proposta de “Teatro-Bíblia” que Augusto Boal descreveu na década de 70 em seu livro Técnicas latino-americanas de teatro popular – uma proposta que buscava apresentar a figura de Jesus Cristo como um revolucionário de seu tempo, um homem que questionava o poder, a desigualdade e o preconceito, e que por isso mesmo havia sido crucificado:

Procura-se oferecer, através do teatro, uma visão “histórica” das atividades de Jesus, certamente cheias de significado político [...], um aspecto que normalmente não se leva em conta. [...] Que faria Jesus se vivesse hoje, historicamente, entre nós – ele que viveu num país ocupado pelo imperialismo, neste caso, o romano? Como lutou pela libertação do seu povo? Como organizou esse povo? Não apenas a vida de Cristo, mas também toda a Bíblia, não apenas o Novo, mas igualmente o Antigo Testamento, estão cheios de exemplos de lutas heroicas pela liberdade. [...] Sendo Jesus tão persuasivo nas suas prédicas, até aqueles que não viam a necessidade de combater o imperialismo romano, depois de ouvi-lo, curavam-se da cegueira. Eram tão eficazes suas palavras que aqueles que viam essa necessidade, mas, como se fossem paralíticos, nada faziam e se justificavam de todas as maneiras possíveis, até esses começavam a fazer o que deviam. E para o cúmulo, aqueles que já estavam mortos para a causa da luta anti-imperialista, esses ressuscitavam e lutavam. Essas são traduções possíveis da fábula. (BOAL, 1979, p. 63 – 64)


Para minha surpresa – alegre surpresa – meu amigo me disse que os integrantes do grupo eram muito abertos a propostas desse tipo e que há alguns anos atrás haviam encenado uma versão nada convencional da Paixão de Cristo, mostrando Jesus como um presidiário em sua relação com a sociedade e o sistema carcerário. Imaginei que essa leitura tão contemporânea não deve ter caído nas graças do público e pensei na coragem dos que buscam fazer arte não para reafirmar éticas e estéticas já digeridas, mas para propor outros olhares, reflexões, experiências, mesmo correndo o risco de desagradar – como, aliás, foi o caso de Jesus...

Enfim, não sei como essa história vai continuar. Pode ser que o grupo se interesse mais por um professor que ensine técnicas de atuação, sem grandes questionamentos éticos. Isso é comum nas próprias escolas de teatro... De minha parte, senti que o “não” inicial ao convite de meu amigo se abriu como uma possibilidade curiosa e não-ingênua de ir até esse grupo e perceber como essas questões poderiam (podem) reverberar. Vamos ver o que acontece...

Referências bibliográficas:

BOAL, Augusto. Técnicas latino-americanas de teatro popular. São Paulo: Hucitec, 1979.

WERÁ, Kaká. O poder do teatro e as táticas de resistência. In: PARDO, Ana Lúcia (org.). A teatralidade do humano. São Paulo: Edições SESC-SP, 2011, p. 68 a 76.

domingo, 6 de abril de 2014

Livro, poesia e canção na rádio!


Fortaleza, 6 de abril de 2014

Participação poético-musical, conversa muito gostosa
e apresentação do meu livro
no programa "A voz da comunidade" (Rádio Fortaleza FM)
apresentado pelo poeta Carlos Arruda, integrante do coletivo Templo da Poesia.