Fim de tarde. Fui até o novo "espigão" que está sendo construído na Praia do Meireles (Fortaleza), bem em frente ao Clube Náutico. Primeiro preciso dizer que não gosto dessa obra; não gosto das barreiras ou fronteiras que o ser humano tem se dedicado a construir e que avançam cada vez mais por novos territórios. Aqui, não apenas a terra foi dividida, mas também o mar. Além disso, é mais uma obra iniciada e logo abandonada, deteriorando materiais e recursos públicos.
Mesmo não gostando, reconheço que ela cria um espaço que as pessoas têm ocupado de diversas maneiras: caminhando, contemplando, viajando... pescando, namorando, grafitando... Talvez não seja a obra em si que crie o espaço e sim, como diz uma amiga historiadora, a capacidade de apropriação e recriação das pessoas.
Eu sou uma dessas pessoas. Fui até lá com meu violão, sentei na mureta e comecei a ensaiar algumas canções que eu faria no dia seguinte em um sarau na Faculdade de Educação da UERN, em Mossoró (RN).
De repente, um homem se aproxima. Pergunta se pode tirar uma foto. Digo que sim. Ele me fotografa usando seu celular. Pergunto se ele poderia me enviar as fotos por email. Explico rapidamente que realizo intervenções poéticas e musicais em espaços públicos e que para mim é importante ter registros dessas experiências. Ele concorda, anota meu email e passa a fazer novas fotos, agora com uma máquina profissional.
Continuo meu ensaio-intervenção. Ele se afasta um pouco e fica um tempo mexendo na máquina. Então aproxima-se novamente e me mostra sua obra: a fotografia trabalhada artisticamente, evidenciando cores que, originalmente, não faziam parte daquele pôr-do-sol. Fico admirado com as novas cores. E penso em voz alta:
- Realmente, a arte não é a vida:
a arte é um olhar para a vida.
A propósito, eu cantava a "A luz de Tieta", de Caetano Veloso - canção que tem uma letra tão potente, mas que passa despercebida tantas vezes, um pouco ofuscada por seu ritmo e refrão. Fazendo com a canção o mesmo movimento de "apropriação e recriação" do espaço, eu a cantei lentamente, entoando suas palavras para mim, para o mar, para a tarde que findava e para as outras pessoas que, como eu, se ocupavam em ocupar aquele ambiente:
Todo dia é o mesmo dia, a vida é tão tacanha!
Nada novo sob o sol.
Tem que se esconder no escuro quem na luz se banha,
por debaixo do lençol.
Nessa terra a dor é grande e a ambição pequena:
carnaval e futebol...
Quem não finge, quem não mente, quem mais goza e pena
é que serve de farol.
Existe alguém em nós
- em muitos dentre nós esse alguém -
que brilha mais do que milhões de sóis
e que a escuridão conhece também.
Existe alguém aqui, fundo no fundo de você, de mim,
que grita para quem quiser ouvir quando canta assim:
Toda noite é a mesma noite, a vida é tão estreita:
nada de novo ao luar.
Todo mundo quer saber com quem você se deita.
Nada pode prosperar...
É domingo, é fevereiro, é 7 de setembro:
futebol e carnaval.
Nada muda, é tudo escuro, até onde eu me lembro
uma dor que é sempre igual.
Existe alguém em nós
- em muitos dentre nós esse alguém -
que brilha mais do que milhões de sóis
e que a escuridão conhece também.
Existe alguém aqui, fundo no fundo de você, de mim,
que grita para quem quiser ouvir quando canta assim:
Êta, êta, êta, êta,
é a lua, é o sol,
é a luz de Tieta eta eta...