sexta-feira, 2 de agosto de 2013

O andarilho caçador de raízes...

Um dia, o menino decidiu que queria ser andarilho. 
Ele não tinha muita noção do que era ser um andarilho, 
mas gostava muito da ideia. e começou a inventar essa vida...


No primeiro dia de estrada, 
vestiu sua roupa de poeta, um pouco esfarrapada: 
a camisa verde, com flores e versos, 
e a calça larga, tingida,
com uma rosa dos ventos apontando horizontes. 

Encontrou alguns moradores de rua.
Chegando perto deles, anunciou em tom circense:

- Eu sou um andarilho!

Um dos homens falou:

- Andarilho é esse aqui que já foi pra tal e mais tal lugar...

E voltaram a conversar entre si sobre suas andanças.

O menino ficou um pouco decepcionado.
Mas não desistiu de seu plano.

*          *          *

 No começo, era um viajante solitário.
e inventou pra si mesmo um nome: 
O LOBO DAS ESTRADAS ENLUARADAS...
- assim mesmo, cheio das reticências...
Era um cantor acompanhado de seu violão, suas utopias e paixões... 
Gostava da estrada e da beira da estrada.
Passava muitas noites olhando a Lua e as estrelas, 
uivando e chamando um possível amor para um íntimo sarau...



Num desses caminhos, conheceu uma Santa. 
Na verdade, uma mulher. 
Que um dia se tornou santa. 
E recordava seus dias de mulher. 
SANTA MARIA EGICPCÍACA.



Santa Maria Egipcíaca seguia
Em peregrinação à terra do Senhor.

Caía o crepúsculo, e era como um triste sorriso de mártir.

Santa Maria Egipciaca chegou
À beira de um grande rio.
Era tão longe a outra margem!
E estava junto à ribanceira,
Num barco,
Um homem de olhar duro.

Santa Maria Egipciaca rogou:
- Leva-me ao outro lado.
Não tenho dinheiro. O Senhor te abençoe.

O homem duro fitou-a sem dó.

Caía o crepúsculo, e era como um triste sorriso de mártir.

- Não tenho dinheiro. O Senhor te abençoe.
Leva-me ao outro lado.
O homem duro escarneceu: - Não tens dinheiro,
Mulher, mas tens teu corpo. Dá-me teu corpo
[e vou levar-te.

E fêz um gesto. E a santa sorriu,
Na graça divina, ao gesto que ele fez.

Santa Maria Egipcíaca despiu
O manto, e entregou ao barqueiro
a santidade da sua nudez.

(Balada de Santa Maria Egipcíaca,
de Manuel Bandeira)







O menino encontrou também um velho,
bem no meio do caminho.
UM VELHO CORCUNDA CHAMADO PEDRA.


Usava um manto cor de terra,
uma máscara nariguda
e mesma boina antiga que o menino gostava de usar.

Sua voz era como um rangido: seca, arranhada, enferrujada.
Mas ele cantava. E fazia graças.
Só que ninguém achava graça.
E ele foi ficando azedo.

Tinha sempre uma caixa nas mãos;
uma pequena caixa de madeira,
que ele entreabria e espiava dentro.
Ali morava um segredo, seu grande segredo.
Ele perguntava às pessoas se queriam conhecer seu segredo.
E quase contava.
Mas então se lembrava de exigir algo em troca.
Seu segredo era muito importante pra ser dado assim, de graça.

Ele nunca mostrou seu segredo.
E ficou ainda mais azedo. 



O VELHO era um alerta, seu pesadelo-conselheiro.

*          *          *

O menino também se encontrou nesses caminhos,
personagem de si mesmo. 
E gostava de uma imagem que sempre levava consigo: 
um homem no campo, cortando, com um machado, uma raiz. 
O Andarilho tentava cortar suas raízes.

O Lenhador (Van Gogh)

Passaram-se anos...

*          *          *

Um dia, o menino, já mais rapaz, 
cismou com um tal de “caçador de raízes” 
que encontrou num poema de Neruda:

Al bosque mío entro con raíces,
con  mi fecundidad.

- De donde vienes?
(me pregunta uma hoja,
verde y ancha como un mapa).

Yo no respondo.

- Vengo a buscar raíces.
Esa raiz debe nutrir mi sangre.

A partir desse dia, sentiu nascer em si esse caçador,
um caminhante que percorria estradas, vilas, cidades e florestas 
em busca de histórias que pudessem curar um mundo doente. 
Era um homem de utopias e grandes contradições. 
Chegava e partia cantando, não se sabe de onde nem para onde. 
Às vezes dançava com instrumentos nas mãos, 
limpando os olhares de quem encontrava 
e de si mesmo, quando se perdia.


Gostava de conversar com as pessoas. 
Tomava banho pelado nas fontes e nos rios. 
Entrava em bosques de árvores e pensamentos. 
Fazia fogueiras, fogatas, cantava e tocava até quase o dia raiar. 
Às vezes, raiando o dia. 
Dormia. Sonhava. Esquecia. 
Acordava, saudava, alongava. 
E retomava sua caminhada.

Era ainda um pouco solitário, 
um pouco preso em sua própria redoma. 
Mas um dia encontrou Amor. 
Foi o acaso, uma brincadeira, uma frase carente, ousada, sem medo... 
captada no ar por uma madrinha-casamenteira... 
e levada até o outro ser, também solitário, 
mas disposto a arranjar companhia nem que fosse em agência. 
Encontraram-se. 
Acenderam velas. 
Fizeram sexo. 

Um dia, conversaram sobre sonhos:

- Meu sonho é passar algum tempo em uma cidade pequena, 
envolvido em algum projeto de educação.

O outro se empolgou:

- Pra mim isso é um projeto de vida.

Combinaram que fariam algumas viagens, 
sempre que tivessem tempo e dinheiro. 
E que sentiriam quanto tivessem encontrado o lugar.

Primeiro encontraram a cidade. 
Era pequena e bonita. 
Tinha rio e tinha mar. 
E por lei não era permitida a construção de edifícios. 
Uma cidade possível para horizontes.

Depois encontraram a casa: 
branca, no meio da mata e das montanhas, 
com pássaros e com aranhas 
– o que não constava nos planos originais, 
mas acabou gerando uma canção até que original... 
Ali viveram dois anos. 
Fizeram horta, comidas coletivas, 
namoraram estrelas à luz das estrelas, 
fizeram e viveram amor. 
Também descobriram que o paraíso pode ser bem angustiante de vez em quando...

Voltaram para a cidade grande. 
E de novo para uma cidade pequena. 
Mas era uma cidade que queria ser grande. 
Seu lema era: “A METRÓPOLE DO FUTURO”. 
Nessa cidade a lei protegia os edifícios altos 
e condenava as casas antigas, 
que iam sumindo das ruas e das memórias. 
Essa cidade assustou o menino-andarilho, 
que sentiu falta de liberdade e de ser feliz.

Mudaram-se novamente. 
Por amor. Com amor. 
Deram a volta de um ciclo e encontraram novo lugar. 
Na verdade, novos lugares: 
um lugar pra cada um e uma ponte a ligar. 
Continuam a sonhar.




*          *          *

Um dia, o antigo andarilho sentiu falta de suas raízes. 
E decidiu retomá-las. 
Voltou ao lugar de antigas fotografias. 
Escreveu memórias que não sabia que ainda guardava. 
E anotou aqui esses registros: 
o prólogo de um livro que continua a ser escrito...




*          *          *

Este texto, ainda em processo, é fruto de uma série de vivências pessoais e artísticas que resultaram em intervenções poético-musicais e nas criações cênicas O Andarilho (orientada por Ana Gallotti) e O caçador de raízes (dirigida por Márcio Costa), apresentadas entre 2001 e 2010 em São Paulo, Pernambuco, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Chile.

Fotos das intervenções: Ana Gallotti.
Bordados: Vera Gomes.