Um dia, o menino decidiu que queria ser andarilho.
Ele não tinha muita noção do que era ser um andarilho,
mas gostava muito da ideia. e começou a inventar essa vida...
Ele não tinha muita noção do que era ser um andarilho,
mas gostava muito da ideia. e começou a inventar essa vida...
No primeiro dia de estrada,
vestiu sua roupa de poeta, um pouco esfarrapada:
a camisa verde, com flores e versos,
e a calça larga, tingida,
com uma rosa dos ventos apontando horizontes.
vestiu sua roupa de poeta, um pouco esfarrapada:
a camisa verde, com flores e versos,
e a calça larga, tingida,
com uma rosa dos ventos apontando horizontes.
Encontrou alguns moradores de rua.
Chegando perto deles, anunciou em tom circense:
Chegando perto deles, anunciou em tom circense:
- Eu sou um andarilho!
Um dos homens falou:
- Andarilho é esse aqui que já foi pra tal e mais tal
lugar...
E voltaram a conversar entre si sobre suas andanças.
O menino ficou um pouco decepcionado.
Mas não desistiu de seu plano.
Mas não desistiu de seu plano.
* *
*
e inventou pra si mesmo um nome:
O LOBO DAS ESTRADAS ENLUARADAS...
- assim mesmo, cheio das reticências...
Era um cantor acompanhado de seu violão, suas utopias e paixões...
Gostava da estrada e da beira da estrada.
Passava muitas noites olhando a Lua e as estrelas,
uivando e chamando um possível amor para um íntimo sarau...
Num desses caminhos, conheceu uma Santa.
Na verdade, uma mulher.
Que um dia se tornou santa.
E recordava seus dias de mulher.
SANTA MARIA EGICPCÍACA.
Santa Maria Egipcíaca seguia
Em peregrinação à terra do Senhor.
Caía o crepúsculo, e era como um triste sorriso de
mártir.
Santa Maria Egipciaca chegou
À beira de um grande rio.
Era tão longe a outra margem!
E estava junto à ribanceira,
Num barco,
Um homem de olhar duro.
Santa Maria Egipciaca rogou:
- Leva-me ao outro lado.
Não tenho dinheiro. O Senhor te abençoe.
O homem duro fitou-a sem dó.
Caía o crepúsculo, e era como um triste sorriso de
mártir.
- Não tenho dinheiro. O Senhor te abençoe.
Leva-me ao outro lado.
O homem duro escarneceu: - Não tens dinheiro,
Mulher, mas tens teu corpo. Dá-me teu corpo
[e vou levar-te.
E fêz um gesto. E a santa sorriu,
Na graça divina, ao gesto que ele fez.
Santa Maria Egipcíaca despiu
O manto, e entregou ao barqueiro
a santidade da sua nudez.
(Balada de Santa Maria Egipcíaca,
de Manuel Bandeira)
O menino encontrou também um velho,
bem no meio do caminho.
UM VELHO CORCUNDA CHAMADO PEDRA.
Usava um manto cor de terra,
uma máscara nariguda
e mesma boina antiga que o menino gostava de usar.
Sua voz era como um rangido: seca, arranhada, enferrujada.
Mas ele cantava. E fazia graças.
Só que ninguém achava graça.
E ele foi ficando azedo.
Tinha sempre uma caixa nas mãos;
uma pequena caixa de madeira,
que ele entreabria e espiava dentro.
Ali morava um segredo, seu grande segredo.
Ele perguntava às pessoas se queriam conhecer seu segredo.
E quase contava.
Mas então se lembrava de exigir algo em troca.
Seu segredo era muito importante pra ser dado assim, de graça.
Ele nunca mostrou seu segredo.
E ficou ainda mais azedo.
* * *
O menino também se encontrou nesses caminhos,
personagem de si mesmo.
E gostava de uma imagem que sempre levava consigo:
um homem no campo, cortando, com um machado, uma raiz.
O Andarilho tentava cortar suas raízes.
Passaram-se anos...
* *
*
Um dia, o menino, já mais rapaz,
cismou com um tal de “caçador de raízes”
que encontrou num poema de Neruda:
cismou com um tal de “caçador de raízes”
que encontrou num poema de Neruda:
Al bosque mío entro con raíces,
con mi fecundidad.
- De donde vienes?
(me pregunta uma hoja,
verde y ancha como un mapa).
Yo no respondo.
- Vengo a buscar raíces.
Esa raiz debe nutrir mi sangre.
um caminhante que percorria estradas, vilas, cidades e florestas
em busca de histórias que pudessem curar um mundo doente.
Era um homem de utopias e grandes contradições.
Chegava e partia cantando, não se sabe de onde nem para onde.
Às vezes dançava com instrumentos nas mãos,
limpando os olhares de quem encontrava
e de si mesmo, quando se perdia.
Gostava de conversar com as pessoas.
Tomava banho pelado nas fontes e nos rios.
Entrava em bosques de árvores e pensamentos.
Fazia fogueiras, fogatas, cantava e tocava até quase o dia raiar.
Às vezes, raiando o dia.
Dormia. Sonhava. Esquecia.
Acordava, saudava, alongava.
E retomava sua caminhada.
um pouco preso em sua própria redoma.
Mas um dia encontrou Amor.
Foi o acaso, uma brincadeira, uma frase carente, ousada, sem medo...
captada no ar por uma madrinha-casamenteira...
e levada até o outro ser, também solitário,
mas disposto a arranjar companhia nem que fosse em agência.
Encontraram-se.
Acenderam velas.
Fizeram sexo.
Um dia, conversaram sobre sonhos:
- Meu sonho é passar algum tempo em uma cidade
pequena,
envolvido em algum projeto de educação.
envolvido em algum projeto de educação.
O outro se empolgou:
- Pra mim isso é um projeto de vida.
Combinaram que fariam algumas viagens,
sempre que tivessem tempo e dinheiro.
E que sentiriam quanto tivessem encontrado o lugar.
sempre que tivessem tempo e dinheiro.
E que sentiriam quanto tivessem encontrado o lugar.
Primeiro encontraram a cidade.
Era pequena e bonita.
Tinha rio e tinha mar.
E por lei não era permitida a construção de edifícios.
Uma cidade possível para horizontes.
Tinha rio e tinha mar.
E por lei não era permitida a construção de edifícios.
Uma cidade possível para horizontes.
Depois encontraram a casa:
branca, no meio da mata e das montanhas,
com pássaros e com aranhas
– o que não constava nos planos originais,
mas acabou gerando uma canção até que original...
Ali viveram dois anos.
Fizeram horta, comidas coletivas,
namoraram estrelas à luz das estrelas,
fizeram e viveram amor.
Também descobriram que o paraíso pode ser bem angustiante de vez em quando...
branca, no meio da mata e das montanhas,
com pássaros e com aranhas
– o que não constava nos planos originais,
mas acabou gerando uma canção até que original...
Ali viveram dois anos.
Fizeram horta, comidas coletivas,
namoraram estrelas à luz das estrelas,
fizeram e viveram amor.
Também descobriram que o paraíso pode ser bem angustiante de vez em quando...
Voltaram para a cidade grande.
E de novo para uma cidade pequena.
Mas era uma cidade que queria ser grande.
Seu lema era: “A METRÓPOLE DO FUTURO”.
Nessa cidade a lei protegia os edifícios altos
e condenava as casas antigas,
que iam sumindo das ruas e das memórias.
Essa cidade assustou o menino-andarilho,
que sentiu falta de liberdade e de ser feliz.
E de novo para uma cidade pequena.
Mas era uma cidade que queria ser grande.
Seu lema era: “A METRÓPOLE DO FUTURO”.
Nessa cidade a lei protegia os edifícios altos
e condenava as casas antigas,
que iam sumindo das ruas e das memórias.
Essa cidade assustou o menino-andarilho,
que sentiu falta de liberdade e de ser feliz.
Mudaram-se novamente.
Por amor. Com amor.
Deram a volta de um ciclo e encontraram novo lugar.
Na verdade, novos lugares:
um lugar pra cada um e uma ponte a ligar.
Continuam a sonhar.
Por amor. Com amor.
Deram a volta de um ciclo e encontraram novo lugar.
Na verdade, novos lugares:
um lugar pra cada um e uma ponte a ligar.
Continuam a sonhar.
* *
*
E decidiu retomá-las.
Voltou ao lugar de antigas fotografias.
Escreveu memórias que não sabia que ainda guardava.
E anotou aqui esses registros:
o prólogo de um livro que continua a ser escrito...
* * *
Este texto, ainda em processo, é fruto de uma série de vivências
pessoais e artísticas que resultaram em intervenções poético-musicais e
nas criações cênicas O Andarilho (orientada por Ana
Gallotti) e O caçador de raízes (dirigida por
Márcio Costa), apresentadas entre 2001 e 2010 em São
Paulo, Pernambuco, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Chile.
Fotos das intervenções: Ana Gallotti.
Bordados: Vera Gomes.